Jequibau

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Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda utiliza a metáfora do ladrilhador e do semeador para diferenciar o conquistador hispânico do português nas Américas.

O ladrilhador funda cidades geométricas, racionais, enquanto o português – seguindo os caprichos do relevo – vai semeando vilas irregulares, sem planejamento.

Esse espírito aventureiro e imediatista dificultou o amadurecimento das instituições públicas, mas trouxe uma contribuição decisiva para as artes. Seguindo o litoral brasileiro de Pernambuco ao Rio de Janeiro, gêneros musicais germinam irregularmente, sem esforço. Abertos a fusões, seus ritmos parecem buscar o conforto da brincadeira, entre a síncopa e a tercina, saudavelmente desleixados.

Ao revisitarem essas matrizes populares, compositores brasileiros atuantes nesta primeira década do século 21 – todos especialistas nas sutilezas do violão e suas combinações camerísticas — adicionam sentidos sem abdicar da graça.

De Pernambuco vem o frevo, aqui em forma de fuga brasileiro-bachiana traçada pelo paulista Paulo Bellinati (faixa 1), assim como o baião-frevo-maracatu (aliado à chacona e à fuga) de outro paulista, Paulo Tiné: Rabichola de Cabra (faixa 2) homenageia Hermeto Paschoal e imita a sonoridade do nome do citarista Ravi Shankar.

Sambadalu, cujo título remete à cantora Luciana Souza (faixa 3), é um samba escrito por Marco Pereira, um paulista radicado no Rio de Janeiro.  A introdução nervosa evoca os célebres duetos de Dizzy Gillespie e Charlie Parker – ou de Benedito Lacerda e Pixinguinha – até desaguar na levada difundida pelos cariocas do Estácio.

Em Carlo’s Dance (faixa 4) Paulo Bellinati evoca a especulatividade de São Paulo, o jequibau, a bossa nova em compasso de cinco tempos inventada por Mário Albanese e Cyro Pereira na década 1960.

Segue-se A Fala da Paixão (faixa 5), uma “canção sem palavras” do fluminense Egberto Gismonti recriada pelo cubano Leo Brouwer como movimento de Gismontiana, concerto para quatro violões estreado no Brasil pelo Quaternaglia.

É a busca da universalidade dos interiores, processo aprofundado em Dança dos Quatro Ventos (faixa 6), virtuosístico galope escrito por Marco Pereira, e Sibéria (faixa 7), valsa de Paulo Tiné com influência de Camargo Guarnieri, que não recusa o jazz e inclui até mesmo uma seção pontilhista dodecafônica.

O retorno ao litoral dá-se através de Açaí com Tapioca (faixa 8), também de Marco Pereira, um “tempo de maxixe” típico da música instrumental do sudeste justaposto ao coco nordestino. O título faz referência a um sorvete popular em Belém do Pará – também chamado “mestiço” ou “paz e amor” – cidade onde a peça foi estreada pelo Quaternaglia com a participação do compositor.

Se Frevo e Fuga foi encomendada a Paulo Bellinati para uma apresentação do Quaternaglia na cidade estadunidense de Columbus em 2010, Baião de Gude (faixa 9) havia sido a primeira obra do compositor dedicada ao quarteto. Sua edição internacional (GSP 201) tem permitido interpretações de diferentes ensembles ao redor do mundo. Voltar a ela doze anos após a primeira gravação é uma forma de celebrar os 20 anos do grupo com a segurança da força das origens.

A partir das referências de Sérgio Buarque, o filósofo paraense Benedito Nunes comenta o fato de as cidades portuguesas na América colocarem em crise praças e jardins – esses símbolos das esferas pública e privada.  Para Nunes, o espaço típico do Brasil é o quintal.

“Enclave do rural no urbano”, o quintal não se abre para a rua, mas, ao contrário, aproxima a casa da natureza ao mesmo tempo em que se afasta igualmente da racionalidade dos jardins.

No quintal semeiam-se os gêneros, ajustam-se os tempos dos ritmos.  Tradicional ponto de encontro para a prática da música espontânea, é também lugar de contemplação íntima e – conforme definiu Manuel Bandeira – “de treino para a poesia”.

Este CD aposta que a música de câmara ainda pode aprender com os sons dos quintais.

Sidney Molina

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